sexta-feira, 5 de março de 2010



Os gatos são pardos, selvagens e saem à caça.

É sábado numa cidade cinza e automatizada, onde todos andam sobre rodas. As noites são densas, carregadas do cheiro de asfalto molhado, decadência e sonhos perdidos de jovens egos inflamados.

Felinos pardos selvagens saem de esconderijos iluminados por aparelhos de TV. Levam consigo seus jovens egos inflamados à caça.

Encontram-se em abrigos subterrâneos com jogos de luzes e flashes capazes de causar confusão mental e cegueira momentâneas. Todos se vestem à caráter, como o esperado. Seriam uniformes se não insistissem em imprimir nas roupas um pouco de personalidade. Dividem-se geralmente por gêneros em grupos e duplas, mas existem também os animais solitários. A verdade é que todos estão mesmo sozinhos.

Provavelmente nunca se viram, porém compartilham o gosto por abrigos subterrâneos pouco ventilados. Animais solitários buscando conforto e aprovação entre estranhos. Um refúgio pós-moderno decorado pela mistura de conceitos futuristas, pop art e balcões de madeira rústica. Resultado de uma busca frustrada por originalidade. Quem se importa?

O som tem um volume capaz de não deixá-lo pensar ou ouvir quem fala com a boca colada na sua orelha, mas não tão alto a ponto de torná-lo surdo. Eliminem a conversa, mantenham os corpos grudados. Os gatos fecham os olhos, movimentam-se no ritmo, ficam excitados. Lançam olhares lascivos, ganham confiança bebendo leite aditivado. Anestesia geral. Generalizada.

[Aniquilem nossos sentidos. Dêem-nos prazer. Façam-nos esquecer que caminhamos para o nada. Somos animais perdidos, acumulamos fracassos, nos sentimos culpados. Pequenas luzes de esperança batendo no mundo. Apagando-se no compasso do tempo.]

Enquanto a madrugada avança do lado de fora, o ar do subsolo fica cada vez mais carregado. Fumaça, suor, tesão, oxigênio condensado. Sorrisos de sábio chinês nos lábios, olhos semicerrados. Chegamos a um novo estágio agora, de esvaziar o corpo e encharcar a alma. Uma grande oportunidade de entrarmos em contato com o outro mundo. Se acreditássemos nele.

Uma das felinas olha para o teto com admiração, alegria e perplexidade. Mantém os olhos fixos num ponto, ergue os braços numa tentativa de tocá-lo, sente-se iluminada. Jesus Cristo na boate? Impossível. Somos animais quase racionais, quase selvagens, quase civilizados. Não acreditamos no inexplicável. Seria apenas mais um ponto de luz se ela não estivesse chapada.

Substâncias ilícitas, hedonismo, autopiedade.
Animais degenerados.


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